É fato, vivemos em uma cultura da privacidade compartilhada. Por mais paradoxal que pareça, gostamos que nossas experiências sejam vistas e comentadas, segundo o expert em comunicação e cultura digital Raffael Martins, professor da Esamc Santos. O verbo stalkear, inicialmente usado para as pessoas que seguiam as bandas de que gostavam pelos lugares de shows etc., ficou ligado a algo pejorativo. Mas hoje, com as redes sociais, todos somos stalkers, na visão de Rafael Konda, relações públicas com pós em marketing digital: “Seguimos pessoas, curtimos fotos e comentamos em publicações de terceiros o tempo todo, porque é fácil e instantâneo”.
Martins dá outros argumentos: “Nossas redes sociais e vínculos de amizade se fortalecem quando temos pensamentos parecidos, experiências sociais desejadas, sonhos e até inimigos sociais em comum. Em contrapartida, muitos de nossos hábitos do dia a dia geram inveja ou afetam convicções alheias”.
Verdade que stalkers e voyeurs sociais já existiam antes da internet (um dos mais famosos matou o ex-beatle John Lennon). Só que a rapidez, a facilidade de acesso à informação e nossa atual cultura de exposição facilitam essa vigilância.
Antigamente, se um stalker quisesse agir, precisaria morar perto do stalkeado, gastar tempo acompanhando-o e se expor perguntando coisas ao próprio alvo ou a amigos. Uma vez que não criamos filtros de publicação e jogamos nossa privacidade para o coletivismo, facilitamos que mais pessoas possam nos vigiar e consumir diversas informações da nossa rotina.
Rafael Godoy, psicólogo com aprimoramento em estresse pós-traumático, concorda que seguir pessoas nas redes sociais, curtir muito do que elas postam e comentar, entre outros comportamentos da atualidade, não são necessariamente atitudes patológicas. “Muitos fazem isso, desde crianças, nerds, pais e responsáveis, detetives, headhunters, até os chamados stalkers. A motivação de cada um é o que o faz ser benéfico ou não. Ou seja, é doença e exige tratamentos e afeta a vida de quem faz e/ou de quem é alvo”, afirma Godoy, explicando que a diferença pode ser difícil de ser notada.
Fã confesso
A stylist de moda Fernanda Prats é a prova viva de que existem stalkers do bem. “Quando fiz um tour pela Escandinávia, um rapaz viu minhas postagens marcadas como #scantrip e passou a curtir minhas fotos. Não posso reclamar. Nos últimos dez meses tem sido um stalker fiel! Na época do Desafio do Balde, adivinha quem ele escalou? Não quis decepcioná-lo, então aproveitei para mandar uma mensagem de economia de água, além de fazer minha doação”, conta Fernanda, a única brasileira selecionada para o Remote Year, que reunirá pessoas de diversas nacionalidades e profissões por 12 meses visitando 12 destinos internacionais e trabalhando remotamente.
Mas Fernanda também observa que outros perseguidores levam ao extremo sua admiração, imitando até o lifestyle de quem são fãs. Fazem dietas malucas, compras por impulso... Tudo para ter alguma migalha em comum com a blogger ou instagrammer da vez. “Alguns stalkers são aproveitadores. Usam o espaço de comentar em perfis famosos para divulgar eventos, fazer venda on-line ou lançar pedidos como Troco Likes e SDV (SigoDeVolta). A pessoa escreve isso para atrair visibilidade ao próprio perfil. E, normalmente, quem atende a esses pedidos tem o mesmo objetivo. Com isso, anônimos ganham mais seguidores anônimos, na tentativa de obter sua cota de fama”, explica a stylist. Mas qual é a credibilidade de uma pessoa que forja relevância assim?
Existem ainda os haters, que perseguem para criticar, difamar e destilar veneno publicamente. “Uma amiga teve de deletar suas contas em redes sociais e alterar o e-mail por causa de alguém que, se passando por ela, xingava nas caixas de comentários alheias”, relata Fernanda. Atualmente, essa amiga só atende por pseudônimo e tem códigos com os conhecidos para evitar a confusão.
Vampiro de identidade
Godoy explica que um stalker patológico normalmente demonstra ciúmes e posse muito cedo na relação, achando-se responsável pela existência do outro ou vice-versa. Pode viver 24 horas em função do alvo e mudar de humor, ficando agressivo sem motivo. Em sua fala, sempre incluirá o que o outro fez, tem ou valoriza, às vezes de forma velada. Chega a perder as noções de espaço e de tempo, ficando horas a fio na internet vigiando ou de plantão num local à espera. Não enxerga limites e é apelidado de vampiro de identidade.
Os estudos a esse respeito são novos, mas ter a autoestima abalada por um amor não correspondido ou por forte humilhação no trabalho é um dos motivos apontados em pesquisas do mundo todo.
“Problemas em lidar com perdas na infância e na fase adulta são outros”, aponta Godoy. Para melhor compreensão, como há vários tipos de stalkers, o psicólogo elege três mais comuns:
O rejeitado: na maioria das vezes, por um amor, ele tenta retomar a relação de qualquer jeito ou se vingar.
O ressentido: acha que foi humilhado ou injustiçado por alguém (o chefe ou o síndico, por exemplo) e colhe o máximo de informações na vida real e na web, a fim de buscar revanche.
O íntimo: uma troca de olhar, curtida ou comentário da vítima pode ser o start para ele fantasiar uma ligação. E querer mais.
A psicóloga Giuliana Boschini já ouviu em seu consultório vários casos de perseguidores e perseguidos no ambiente virtual. “Há muita gente que fica espionando a vida dos ex, querendo saber o que estão fazendo e com quem. Começam uma tortura autopunitiva, em vez de seguirem em frente. E é cruel como se martirizam, indagando o porquê do ex ter colocado no seu status um relacionamento sério com fulana de tal, quando não havia feito o mesmo no tempo em que estavam juntos”, conta Giuliana.
Há quem crie perfil falso para obter mais informações. “Atendi uma moça que se fez passar por uma personagem linda e sedutora numa rede social para atrair o ex. Ele, sem saber com quem de fato flertava, falou do antigo relacionamento. Minha cliente ouviu histórias e detalhes a seu respeito que a machucaram. O resultado dessa investida foi muita dor”, exemplifica a psicóloga.
Outro cliente foi perseguido por uma ex-namorada pelas redes sociais. “A vida dele se tornou um inferno. Teve seus e-mails e redes sociais invadidos, e toda a família se viu em pânico diante de ameaças. Além de boletins de ocorrências, ficavam todos off-line por questões de segurança. Foi uma tortura psicológica insana”, diz Giuliana.
Curiosidade demais
Para o publicitário Felipe Ribeiro, especialista em mídias sociais e marketing de conteúdo, o que leva uma pessoa a ser um stalker é algo comum a todos nós: curiosidade. Vira problema se ela vê mais prazer em acompanhar o que o outro faz do que em usufruir a própria vida.
“Uma coisa é espelhar-se em alguém que admira. Outra é querer ter as mesmas coisas e experiências. A grama do vizinho é sempre mais verde. Imagina, então, se essa grama for olhada através das redes sociais, onde as pessoas fazem questão de mostrar quanto são felizes e bem-sucedidas – nem que esses momentos durem apenas o instante daquela foto”, compara Ribeiro.
A necessidade de nos mostrarmos melhores do que os outros é algo inerente ao ser humano, na opinião do publicitário, e com o advento das redes sociais pessoas normais – como eu e você – passam a ter voz e exposição pública. E muitas pessoas não sabem usar isso de maneira sóbria, sensata e amigável. Expõem sua intimidade sem pensar nas consequências. “As redes sociais não incentivaram o voyeurismo digital, mas facilitaram o processo. Só que, se existe algo para ser visto na web, alguém colocou lá. Não podemos só culpar o mensageiro pela mensagem”, continua Ribeiro.
Como se proteger
Não quer passar por arrogante na rede, como alguém que deixa tudo privado para ninguém ver? Konda sugere atentar para o tipo de conteúdo que compartilha: “Evite postar onde está no momento, novas aquisições (se acabou de comprar um carro, por exemplo) ou opinar sem muito embasamento”.
Já para quem não quer alimentar perseguição de ex, o conselho de Giulianaé: “Diga a verdade ao outro, que você não quer mais teclar com ele ou ela. Vale bloquear, ficar invisível ou usar outro recurso de escudo, sendo que falar a verdade pode ser uma forma mais clara de você colocar o seu limite e manter sua liberdade na internet, sem ter de sustentar mentiras”.
Para saber se está sendo stalkeado, Martins indica ficar atento com alguém que: curte todas as suas fotos de uma só vez indistintamente do conteúdo; sempre comenta sobre suas publicações com outras pessoas; faz o papel de seu advogado (favorável ou desfavorável) em discussões sociais; adiciona seus amigos mesmo que não sejam amigos dele; põe você como referência para coisas boas ou ruins (algo tipo “não sei viver sem você” ou “então é tudo sua culpa”).
“No mundo virtual, não deixar conteúdos de cunho pessoal tão expostos, não aceitar qualquer um como amigo e não seguir qualquer pessoa ou página já é um bom começo”, orienta Godoy. Redes sociais possuem configurações de segurança ou privacidade para você restringir o acesso às suas informações.“Reflita antes de postar qualquer coisa. Proponho aos nossos clientes esta reflexão: você mostraria essa foto/mensagem/vídeo a pessoas desconhecidas em um auditório lotado ou shopping? Se sim, vá em frente. Senão...”, fala Ribeiro, incentivando o bom senso.
Nas palavras de Fabricio Posocco, autoridade em direito digital: “A grande rede é faca de dois gumes. Há o lado prático para a comunicação e o perigoso de muitos malfeitores, que estão sempre à frente. Faça o possível para se antecipar a eles”. O advogado observa que o trabalho do stalker ficou mais simples. Várias redes, como Facebook, FourSquare e Twitter, oferecem recursos de geolocalização, apontando onde você está, para quem quiser ver.
Se for a vítima
“Elabore um boletim de ocorrência. Na hipótese de cyberstalking, considere ir a uma delegacia especializada em crimes digitais, além de elaborar em cartório uma Ata Notarial, o que facilita mover processos no futuro: de ação civil de indenização (por danos morais e/ou materiais) e processo criminal (contravenção penal, crimes contra honra,Lei Maria da Penha ou Lei Carolina Dieckmann). E, sempre que possível, sendo mulher, solicite uma medida judicial de proteção”, detalha Fabricio.
E mais: prove a perseguição reunindo testemunhas, gravações, imagens de câmeras de segurança ou digitais, fotografias. Um boletim de ocorrência marca a data do fato, o agente do delito, sua conduta típica e antijurídica e o local da perseguição. Já no caso do cyberstalking, elaborar em cartório um instrumento público, e não apenas imprimir páginas, dá maior segurança ao juiz na apreciação da situação.
Esta reportagem foi escrita por Joyce Moysés
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