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Afastamento de Cunha agrada a opinião pública, mas não se sustenta juridicamente

Na manhã da quinta-feira (5/5), o Supremo Tribunal Federal, em decisão liminar da lavra do ministro Teori Zavascki, determinou a suspensão de Eduardo Cosentino da Cunha (PMDB-RJ) do exercício do mandato de Deputado Federal e, por consequência, da função de presidente da Câmara dos Deputados.

A notícia, justificadamente, desperta intensas paixões. Afinal, vive-se contexto de grande instabilidade e desconfiança das instituições políticas. Desse modo, é importante avisar ao leitor, já consternado e raivoso com textos que se propõem críticos, que não se defenderá, em nenhum momento ao longo deste breve ensaio, a pessoa ou os atos praticados pelo parlamentar afastado (atribuição precípua e exclusiva do Poder Judiciário).

Assim, não se fará qualquer juízo de valor quanto aos fatos que abalizaram o pedido e a decisão de afastamento. Não se trata de texto de viés político, não pretendendo este articulista comentar os caminhos e articulações de quem quer que seja. A preocupação que move o presente estudo, muito embora seja de difícil compreensão nesse agitado momento, é maior.

Crises políticas são transitórias, ainda que suas consequências possam ser sentidas ao longo do tempo; efeitos de decisões judiciais, porém, podem guardar ainda maior perenidade, notadamente quando produzidas pela Suprema Corte. Elas, induvidosamente, têm o poder de influir em toda estrutura do Poder Judiciário, formando jurisprudência que certamente será aplicada a outros casos. A preocupação, portanto, é com as razões de decidir e sua inevitável extrapolação.

É bem verdade que na decisão liminar, em razão das evidentes repercussões dos argumentos nela utilizados, tentou-se limitar sua abrangência:

Decide-se aqui uma situação extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada.A sintaxe do direito nunca estará completa na solidão dos textos, nem jamais poderá ser negativada pela imprevisão dos fatos. Pelo contrário, o imponderável é que legitima os avanços civilizatórios endossados pelas mãos da justiça. [grifos inseridos]

Por mais que se aponte uma situação “extraordinária”, “excepcional”, “pontual” e “individualizada”, é absolutamente incontrolável a extrapolação dos fundamentos jurídicos encampados na decisão para demais casos. E é essa a questão que ora se analisa, notadamente em dois pontos referentes ao cabimento de medidas cautelares diversas da prisão, além de uma criação jurisprudencial que se anuncia. Não se pode sufragar nem concordar com o processo penal de emergência.

Pois bem. Em dezembro de 2015, a Procuradoria-Geral da República apresentou (manifestamente ilegal) pedido de afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, alegando que este estaria se utilizando do cargo e função por si ocupados, “em interesse próprio e ilícito, qual seja, evitar que as investigações contra si tenham curso e cheguem a bom termo, bem como reiterar as práticas delitivas, com o intuito de obter vantagens indevidas”. Os fatos que motivaram o pedido — é necessário repetir — são irrelevantes para a presente análise, em que pese sejam graves, se tiverem ocorrido.

A primeira dificuldade jurídica que se verifica refere-se à própria natureza jurídica do afastamento cautelar: cuida-se de medida substitutiva à prisão preventiva.

Ora, mas se prisão preventiva contra deputados e senadores é descabida, nos termos do artigo 53, § 2º, da Constituição Federal, não se poderia adotar medida substitutiva.

Sustenta-se, juridicamente, que o pedido de afastamento das funções públicas, prevista na legislação processual (artigo319, VI, do Código de Processo Penal), somente seria legítimo se a própria prisão preventiva fosse inicialmente cabível. É exatamente esse o ponto de extrapolação: pode o juiz aplicar medida alternativa à prisão quando esta é, peremptoriamente, incabível? A decisão parece chancelar esse raciocínio.

Com as devidas e necessárias licenças, o descabimento da medida é admitido pelo próprio ministro do Supremo Tribunal Federal que proferiu a decisão liminar:


Mesmo que não haja previsão específica, com assento constitucional, a respeito do afastamento, pela jurisdição criminal, de parlamentares do exercício de seu mandato, ou a imposição de afastamento do Presidente da Câmara dos Deputados quando o seu ocupante venha a ser processado criminalmente, está demonstrado que, no caso, ambas se fazem claramente devidas. [grifos inseridos]

Repita-se a exaustão: a existência de garantias e normas legais é inócua, se, no primeiro instante de dificuldade prática, ou incômodo político, tais direitos fundamentais são solapados, para se atender aos reclamos da população. Necessário questionar se vale tudo para combater fatos graves?São pertinentes as palavras do ministro Gilmar Mendes, a respeito da função contramajoritária que o Poder Judiciário efetiva:


Não cabe a esta Corte fazer relativizações de princípios constitucionais visando atender ao anseio popular. É preciso garantir e efetivar tais princípios, fazendo valer sua força normativa vinculante, dando-lhes aplicação direta e imediata, ainda que isso seja contra a opinião momentânea de uma maioria popular. Certamente, a decisão desta Corte que aplica rigorosamente aConstituição poderá desencadear um frutífero diálogo institucional entre os poderes e um debate público participativo em torno dos temas nela versados. A história nos demonstra que as decisões contramajoritárias das Cortes Constitucionais cumprem esse importante papel, uma função que, em verdade, é eminentemente democrática.

Segundo a Constituição da Republica Federativa do Brasil, não. Segundo as Cortes Internacionais, não. Segundo a Democracia, não.

Se há um Poder, entre os três poderes da República Federativa do Brasil, que tem o dever constitucional de garantir a Ordem Democrática, assumindo posições contramajoritárias, é o Poder Judiciário. Este não pode adotar decisões, acatar pedidos que não tenham base jurídica, que não tenha fundamentação idônea para sua concessão. Sua legitimidade (não outorgada por voto popular), reside exatamente nessa obediência.

Deste modo, o afastamento liminar do presidente da Câmara, em substituição a uma prisão preventiva incabível (pedido juridicamente impossível) Eduardo Cunha, revela-se descabido e perigoso. Quando a sociedade clama e o juiz acata, entra-se em uma cinzenta e perigosa área, em que os poderes se misturam e a legitimidade de todo o sistema se perde.

O afastamento cautelar de servidor público é medida excepcional e somente poderá ser adotada nos termos da lei. Apenas caberá caso seja situação que enseje prisão preventiva, sendo o afastamento, portanto, substituição, a partir de interpretação do artigo 319 do CPP.

O Poder Judiciário tem compromisso fundamental e essencial com a legalidade, pois protegê-la é, ao fim e ao cabo, proteger toda a sociedade. Se o Poder Judiciário rasga garantias conferidas à Deputados, figuras notórias da República, o que esperar que esse mesmo Poder fará com os demais cidadãos (súditos)?

É esse, também, outro ponto de extrapolação. Permitir-se-á, a partir dessa decisão, o poder geral de cautela do Poder Judiciário, ainda que expressamente contrário à lei? Poderão ser decretadas cautelares, por argumentos contingenciais, quando o ordenamento jurídico proíbe? Mais uma vez, a decisão liminar permite esse raciocínio.

Por fim, o Poder Judiciário enuncia uma nova regra:

A solução constitucional é outra: caso tenha contra si recebida denúncia ou queixa-crime, como aqui ocorreu, deixa ele de ostentar condição indispensável para assumir, em substituição, o cargo de Presidente da República.

Seria até discutível que o Poder Legislativo pudesse, ainda que através de emenda constitucional, estabelecer tal tipo de requisito, frente à garantia constitucional de presunção de inocência (enquanto norma de tratamento que veda valorações negativas extraídas de processos e investigações em curso, sem trânsito em julgado de decisão condenatória)

A questão guarda ainda maior gravidade quando é o Poder Judiciário que adota tal posição. É, com as imperiosas licenças, um protagonismo indevido no cenário democrático, que revela um déficit de representação e profunda fragilidade das instituições políticas.

E lembro ao leitor: o direito penal é do fato e não do autor. Não me interessa defender o presidente da Câmara. Se alguém assim interpretar este texto, é porque não o leu adequadamente. A necessidade é de resguardar aConstituição, os princípios processuais, que não podem ser reescritos em situações aparentemente graves. Aliás, nós, professores de direito penal, precisamos começar a ensinar aos nossos alunos que a legalidade estrita (o princípio não e simplesmente da legalidade, e da legalidade estrita) somente é válida em situações normais. Para a exceção, exceções à legalidade. Pode ser que você não se incomode por isso agora, mas, infelizmente, tenha certeza de que você irá se incomodar com esta insegurança jurídica algum dia.

Enfim, a decisão de afastamento pode agradar à opinião popular (quiçá tenha sido absolutamente necessária e, até mesmo, tardia). Mas, em um Estado Democrático de Direito, os fins não servem como justificativa dos meios empregados. Os instrumentos jurídicos, para o bem da democracia, não podem ser utilizados para suprir deficiências políticas.

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